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ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntáriamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesava a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa -- eu os deixei
Na antecãmara, feita em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.1
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado
Sinto a saudade mais perto.2
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1 Publ. in Ressurreição, 9, Fevereiro de 1920
2 Publ. in Renascença, Lisboa, 1919
FERNANDO PESSOA
ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntáriamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesava a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa -- eu os deixei
Na antecãmara, feita em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.1
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado
Sinto a saudade mais perto.2
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1 Publ. in Ressurreição, 9, Fevereiro de 1920
2 Publ. in Renascença, Lisboa, 1919
FERNANDO PESSOA