domingo, 27 de abril de 2014

418 - NATÉRCIA FREIRE - CREPÚSCULO

418

           CREPÚSCULO

Uma Pátria de angústia
No lento anoitecer
Coroa o dia álgido
No verão de ardentes sóis.

Vão morrer os heróis.

A voz crepuscular
Dos campos e das ondas
Agoniza comigo.
E promete e promete

Imensas alquimias
Em braços de outros dias.
Em bocas de outro mae.

Os deuses vão voltar.

Há quanto tempo eu estou
Marcada a fogo e ferro,
Na paz do meu desterro,
Na morte sem enterro.

Oiço-te, Mãe, na bruma
Tangendo às nossas filhas
Um instrumento de espuma
Forrado de sumaúma...

E ele, o meu ser de gelo,
O meu senhor de frio
Amarra-me o cabelo
Aos flancos do navio.
                    (A Segunda Imagem)

Natércia Freire

quinta-feira, 24 de abril de 2014

415 - «DE CEREJAS BRANCAS...» - RAUL DE CARVALHO

415

«DE CEREJAS BRANCAS...»

-- De cerejas brancas, de estrelas vermelhas, de lábios

azuis.
Era a tua voz. Doce, docemente, inocentemente.
Dizia palavras, dizia palavras...  Alucinações.
Monstros e promessas. Magia, segredo. Artes do Diabo

   Reflexos tristes da luz que nos foge, da luz que anda

à solta e nos deixa presos.

   Ouço a tua.voz chamando, chamando...

Ah! nenhum de nós somos os culpados!

   Docemente extinta. Inocentemente.

Um círculo da lua rodeia teus braços,
um raio do Sol te dirige os passos..
É a tua voz! de menino e moço!

Hh!, quanta ternura tem a tua voz,

quanto beijo que jamais fora dado,Deus
quanta linda festa logo interrompida
quanto abraço que desejaste dar...

Ouço a tua voz. É som ou desmaio?

É quebranto? É música? Sai do coração?
Ouço a tua voz, que respeita e ama,
como irmão mais novo a irmão mais velho.

    Diz-me que é inútil. Que essa tua voz

não é verdadeira, porque sofrerás...
Embora me tragas, sem eu saber como,
alguma alegria, um pouco de paz!

Queira Deus que tu, irmão meu, encontres

alguém que ao ouví-la, quando estiveres só
te ame e compreenda, te ouça e adormeça,
te afirme que tens um lugar no mundo...

Raul de Carvalho



     


sexta-feira, 18 de abril de 2014

413 - ESTA GENTE - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN

413

        ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto 

Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos

Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Poi a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo
                     (Geografia)

Sophia de Mello Breyner Andersen

domingo, 13 de abril de 2014

410 - «QUE SENSIBILIDADE...» JOÃO JOSÉ COCHOEL

410

«QUE SENSIBILIDADE...»

Que sensibilidade me sobe
da passada adolescência?
que agudeza dos sentidos
me perturba a consciência?

Surge do desencanto
um mundo a que me abandono.
tranquilo e caricioso
como um sol de Outono.

A cor, a luz, as formas,
sinto-as de coração  novo!
Em tudo desconheço
uma experiência que renovo.,

Como quem sai 
de uma londa doença
deslombrado e comovido
pela convalescença.

                 (Os Dias Íntimos, in 46º.Aiversário)
                            
João José Cochofel

409 - CLANDESTINIDADE - FERNANDO NAMORA

409

                             CLANDESTINIDADE

Secreto me acho

e secreto me sentes
quando
secreto me julgas
impuro me reconheço
quando
o nosso silêncio
são vozes turvas.
Dúbio é o desejo
quando
não é transparente
a água em que se deita
precavidamente.
Clandestinos somos
quando
o que somos
teme a face que pesquisa.
Os olhos são claros
quando
a superfície do espelho
é lisa.

Fernando Namora

sexta-feira, 11 de abril de 2014

408 - ROMARIA - FERNANDO NAMORA

408

      ROMARIA

Há festa! há festa!

Foguetões de romaria,
gente de fora e de dentro!

Quem vem aí, de braço dado comigo,

a inventar o meu sorriso
e a cobrir a escória que me suja?
Quem és tu que em noites nevadas
me vem aquecer o leito?

Vem comigo de olhos despertos,

roxos ou cinzentos
-- cegos
Vem comigo, nua ou louca,
com teu sexo e a tua boca
-- vem à romaria!

Fernando Namora



terça-feira, 8 de abril de 2014

407 - COMO É NATURAL - MÁRIO DIONÍSIO

407
COMO É NATURAL

Vão longe os dias de intermezzo

quando a brisa indolente passeava
doce esperança à flor dos lábios mudos

Se uma folha caía se um rumor

brando acordava o silêncio mal represo
quante alarme  no ar de flores coberto


Vão longe os tempos de alvoroço

de fronteira a fronteira imaginária
rara aventura \ agora impessoal
uma alegria alheia que hoje amarga

Dou corda a este velho relógio de parede

pesa-me o braço que levanto
do peso de outros tempos que desperto

E um fantasma lá dos fundos do quadrante

sorri-me com tristeza e diz É tarde
talvez já seja muito tarde

                       («O Silêncio voluntário», Poesia Incompleta)


Mário Dionísio





quinta-feira, 3 de abril de 2014

406 - POEMA DA RENÚNCIA - ÁLVARO FEIJÓ

406

POEMA DA RENÚNCIA

Que venha a noite e deixe o seu mistério
sobre nós dois, amor!

Não fomos feitos para andar ao sol,
continuamente,
nem para ter saudades do passado
ou para chorar um sonho que se esfolha.

Nascemos só para viver e amar
e construir, na sombra e no silêncio;
nascemos só para cantar  e encher do nosso canto
heróico
a calma da alvorada que se espera;
nascemos só para nos confundirmos
na imensa teoria humana que se forma
e caminha consciente!

Que venha a noite e deixe o seu mistério
sobre nós,
e traga, sobre nós, o esquecimento!

Álvaro Feijó

quarta-feira, 2 de abril de 2014

405 - TEMPO LÚCIDO - TOMAZ KIM

405

   TEMPO LÚCIDO

Tudo é
Este marulhar em cachão
Na teia de veias há milénios traçada
Com exactidão
Da rota de astros jamais traída
E pela vida envilecida
Ou assim julgada.

De nada e para nada serve,
Agora.
O resto que se revela
Fora
Do sanguíneo traçado.
Inesperado,
De súbito desmascarado,
Cimeiro à flor do desejo fugaz,
Torpe (e quando em paz?),
Pautado pela saciedade inevitável,
Exacta,
Coerente com esta condição:
A nossa.

Êxtase. Nojo.
Eis o rumo implacável
De uma jornada
A que o rubro fluir compele
E os fados ordenam.
                             (Exercícios Temporais)

Tomaz Kim



404 - FOTOS WEB

404
FOTOS WEB

403 - REGRESSO - JOAQUIM NAMORADO

403
                            REGRESSO

Em cada canto revejo a minha infância...
outras rosas iguais a estas rosas,
nenhuma tinha o perfume da lembrança
que estas rosas têm,
estas rosas colhidas no jardim distante
-- os ponteiros parados do relógio da torre
que horas marcam?
 Passou o tempo
ou é o emigrante que volta quem mudou?
Tudo me sabe ainda ao que deixei,
ou quero que me saiba porque sei
a recordação do que era?...

Em cada canto me encontro como fui
-- como sou, estrangeiro na minha casa,
ninguém, nem eu, me recohece agora.

Joaquim Namorado

terça-feira, 1 de abril de 2014

402 - MANIA DAS GRANDEZAS - JOAQUIM NAMORADO

402

MANIA DAS GRANDEZAS

Pois bem, confesso:
fui eu quem descobriu as Babilónias
e descobriu a pólvora...
Acredite,
a estrela Sírius, de primeira grandeza,
(única no mercado)
deixou-ma meu tio-avô em testamento.
No meu bolso esconde-se o segredo
das alquimias
e a metafísica das religiões
-- Tudo por inspiração!

Que querem?
Sou poeta
e tenho a mania das grandezas...

Talvez ainda venha a ser Presidente da República...

Joaquim Namorado

401 - «O SOL DEIXOU-ME...» MERÍCIA DE LEMOS

401

«O SOL DEIXOU-ME...»

O sol deixou-me...

É a hora perturbadora e dolorosa
do anoitecer.
As nuvens azuis e cor de rosa
desapareceram.
E a escuridão que se aproxima
faz-me sentir ainda mais
que sou sòzinha

.

O vento transformou-se em brisa
para que nenhuma árvore estremeça
e sacuda os ninhos.

A noite, as rosas levemente pisa,

Espalham-se aromas pelo ar.
As pombas recolhem aos pombais.
As crianças, nos braços das mães,
esfregam os olhos com sono.
Nos lares unidos, há beijos mais amigos.
Fecham-se as janelas uma a uma.

A minha alma pela mais cinzenta estrada

caminha,
sentindo do sol o abandono
                                             (Pássaro Preso)

Merícia de Lemos