quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

667 - A PONTE SOBRE O RIO TEJO

667

A Ponte sb/ o Rio Tejo

Esta foto é retirada do miradouro da Igreja de St.º Amaro, daqui vemos o casario que desce da colina de Santo Amaro até ao rio, ali ao canto inferior esquerdo o Hotel Vila Galé Opera (4*), o rio Tejo, a Ponte 25 de Abril e ao fundo o Cristo Rei já no concelho de Almada de olhos postos na Capital para a proteger.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

665 - «CRISTALIZAÇÕES« CESÁRIO VERDE

665

CRISTALIZAÇÕES

          A Bettencourt  Rodrigues


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
       Vibra uma imensa claridade crua.
       De cócoras, em linha, os calceteiros,
       Com lentidâo, terrosos e grosseiros,
       Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
       E a descoberto sol abafa e cria!
      A  frialdade exige o movimento;
      E as poças de água, como em chão vidrento,
      Refletem  a molhada casaria.

Em pé e perna,  dando aos rins que a marcha agita,
      Disseminadas, gritam as peixeiras;
      Luzem, aquecem na manhã bonita,
      Uns barracões de gente pobrezita
      E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves, nem o choro duma nora!
      Tomam por outra parte os viandantes;
      E o ferro  e a pedra -- que união sonora! --
      Retinem alto pelo espaço fora,
      Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
     Cuja coluna nunca se endireita,
     Partem penedos. Cruzam-se estilhaços.
     Pesam enormemente os grossos maços,
     Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
     Que espessos forros! Numa das regueiras
     Acamam-se as japonas, os coletes;
     E eles descalçam com picaretes,
     Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores.
     Fundeiam, como esquadra em fria paz,
     As árvores despidas. Sóbrias cores!
     Mastros, enxárcias, vergas,. Valadores
     Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte ao frio -- o grande agente! --
     Carros de mão, que chiam carregados,
     Conduzem saibro, vagamente;
     Vê-se a cidade mercantil, contente:
     Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
     Em arco, sem as nuvens flutuantes. 
     O céu renova a tinta corredia;
     E os charcos brilham tanto, que eu diria
     Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
     Eu tudo encontro alegremente exacto.
     Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
     E tangem-me, excitados, sacudidos,
     O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friabem
     De tão lavada e igual temperatura!
     Os ares, o caminho, a luz reagem;
     Cheira-me a fogo, a silex, a ferragem;
     Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
     Dois assobiam, altas as marretas
     Possantes, grossas, temperadas de aço;
     E um gordo, o mestre, com ar ralaço
     E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
´    Que vida tão custosa! Que diabo!
      E os cavadores pousam as enxadas,
      E cospem nas calosas mãos gretadas,
      Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
     Uma bandeira penso que transluz!
     Com ela sofres, bebes,  agonizas;
     Listrões de vinho lançam-lhe divisas.
     E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
     Surge um perfil direito que se aguça;
     E ar matinal de quem saiu da toca,
     Uma figura fina desemboca,
     Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
    E a quem, à noite na plateia, atraio
    Os olhos lisos como polimento!
    Com seu rostinho estreito, friorento,
    Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados, 
    Como lajões. Os bons trabalhadores!
    Os filhos das lezírias, dos montados;
    Os das planícies, altos, aprumados;
    Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queijo hostil, distinto,
    Furtiva a tiritar em suas peles,
    Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
    Neste Dezembro enérgico, sucinto,
    E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
    Eles, bovinos, másculos, ossudos,
    Encaram-na sanguínea, brutamente;
    E ela vacila, hesita, impaciente
    Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
    Sem que ainda o público a passagem abra,
    O demonico arrisca-se, atravessa
    Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
    Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

CESÁRIO VERDE
         

664 - DUAS AMIGUINHAS

664

DUAS AMIGUINHAS

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

663 - «NUM BAIRRO MODERNO» - CESÁRIO VERDE

663

NUM BAIRRO MODERNO

                   A MANUEL RIBEIRO

Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se ,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamisada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmório duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examineia:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela é curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.« E muito descansado,
Atira um cobre igóbil, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente  -- que visão de artista!  -- 
Se eu transformasse os simples vegetais,
A luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com a cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de Bvez em quando.

E eu recompunha, por anatomia.
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancolia,
E nuns repolhos seis injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos  --  ossos nús, do cor do leite,
E os cachos de uvas  -- os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido,fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo  jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate

Bons corações pulsando no tomate 
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos dodo aquele peso
Que  ao chão de pedraresistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho regra a trepadeira
Duma janela azul; e, com ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incendiá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário  -- Q infantil chilrada!  --
Lidam ménages entre gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus ráios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, ma atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras-carneiras.

     LISBOA, Verão de 1877.

CESÁRIO VERDE





terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

660 - «RESPONSO» - CESÁRIO VERDE

660

RESPONSO

             I

Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.

Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.

                II


É loura como as doces escocesas,
Duma belesa ideal, quase indicisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.

Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seus pecados.

                 III

Alta noite, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansissimas do lago.

Pudesse eu ser a Lua, a lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.

                 IV

E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas rossoam uns suspiros
Dolentes como as  súplicas dos cegos

Fosse eu aquelas aves de pilhagem,
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.

                    V

E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
A contemplar as gôndolas airosas,
Que passam, a giorno iluminadas.

Pudesse eu ser o rude gondoleiro
E ali é que fizera o meu cruzeiro.

                  VI

De dia, entre os veludos e entre as sedas.
Murmurando palavras aflitivas,
Vagueia nas umbrosas alamedas
E acarinha, de leve, as sensitivas.

Fosse eu aquelas árvores frondosas,
E prendera-lhe as roupas vaporosas.

                 VII

Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capela onde outrora se ouvia missa,
A música dulcíssima do vento
E o sussuro do mar, que se espreguiça.

Pudesse eu ser o mar e os, meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os com beijos.

                VIII

E às horas do crepúsculo, saudosas,
Nos parques com tapetes cultivados,
Quando ela passa  curvam-se amorosas
As estátuas dos seus antepassados.

Fosse eu também granito e a minha vida
Era vê-la a chorar arrependida.

                IX

No palácio isolado como um monge
Erram as velhas almas dos precitos,
E nas noites de Inverno ouvem-se ao longe
Os lamentos dos náufragos aflitos.

Pudesse eu ser também uma procela
E as lentas agonias ao pé dela.

                    
                  X

E às lages, no silêncio dos mosteiros,
Ela conta o seu drama negregado,
E o vasto carmesim dos reposteiros
Ondula como um mar ensanguentado.

Fossem aquelas mil tapeçarias
Nossas mortalhas quentes e sombrias.

               XI

E assim passa, chorando, as noites belas,
Sonhando uns tristes sonhos doloridos,
E a reflectir nas góticas janelas
As estrelas dos céus desconhecidos.

Pudesse eu ir sonhar também contigo
E ter as mesmas pedras no jazigo.

                XII

Mergulha-se em angústias lacrimosas
Nos ermos dum castelo abandonado,
E as próximas florestas tenebrosas
Repercutem um choro amargurado.

Uníssemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castelã das minhas trovas!

               Março, 1874

CESÁRIO VERDE
                

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

659 -- «IRONIAS DO DESGOSTO» - CESÁRIO VERDE

659

IRONIAS DO DESGOSTO

«Onde é que te nasceu», dizia-me ela às vezes,
«O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
«Porque é que não possuis a verve dos Franceses
«E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?

«Porque é que tens no olhar, moroso e persistente,
«As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
«E abrigas tanto fel no peito, que não sente
«O abalo feminil das minhas expansões?

«Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
«Mas quando tentas rir, parece então, meu bem,
«Que estão edificando um negro cadafalso
«E ou vai alguém morrer ou matar alguém!

«Eu vim --  não sabes tu? -- para gosar em Maio,
«No  campo, a quietação banhada  de prazer!
«Não vês, ó descorado, as vestes com que saio.
«E os júbilos que Abril acaba de trazer?

«Não vez como a campina é toda embalsamada
«E como nos alegra em cada nova flor?
»Então porque é que tens na fronte consternada
»Um não sei que tocante e enternecedor?

E eu só lhe respondia: -Escuta-me. Conforme
»Tu vibras os cristais da boca musical,
»Vai-nos minando o tempo, o tempo -- o cancro enorme
»Que te há-de corromper o corpo  de vestal.

»E eu calmamente sei, na dor que me amortalha.
»Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,
»A pouco e pouco há-de ir tornando-se grisalha
»E em breve ao quente sol  e ao gás alvejará!

»E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
»Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, vãs,
»Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro
»O teu cabelo escuro às veneráveis cãs!»

CESÁRIO VERDE

658 - DÁ-LHE QUE AINDA MEXE ! ..

658

domingo, 15 de fevereiro de 2015

657 - VIDA E OBRA DE CESÁRIO VERDE

657

CESÁRIO VERDE  --  VIDA E OBRA

Nasceu em Lisboa, em 1855, e morreu em 1886. A sua  vida passou-se entre os negócios paternos, um curso de Letras iniciado,
como diz o seu amigo e prefaciador Silva Pinto, «em homenagem ás Letras, como se as Letras lá estivessem [... ]», e curtas viagens a Paris e Londres, sempre dilacerado pelo terror da morte, que sentia próxima.
    Em 1887 faz-se das suas obras dispersas uma colectânea a que é dado o título O Livro de Cesário Verde, com uma tiragem simbólica de duzentos exemplares, que não chegarão a ser postos no mercado. Apenas em 1901 se faz uma edição póstuma, organizada e prefaciada por Silva Pinto, e esta, sim, é comercializada.
     Apesar de não ter vivido o tempo suficiente para nos deixar um
espólio literário considerável, Cesário permanece, talvz até por isso, como um caso ímpar na geração de realistas e parnacianos, sem antecedentes, nem continuadores.
      Ele é a expressão poética  das aspirações, sonhos e conflitos da pequena burguesia lisboeta.
      Lisboa é analizada através dos que nela vivem e dos que nela apenas conseguem sobreviver. As varinas que «embalam nas canastras os filhos», os calceteiros de «costados como lajões», as burguesinhas, os operários, o clero e a Guarda.
      Na sua poesia, Cesário retrata e retrata-se, assumindo sem tibieza posições radicais, que eram afinal as da sua classe pequeno-burguesa antimilitarista  -  «e eu que detesto a farda/cresci com raiva contra o militar»--, republicana e anticlerical -- «uma chusma
de padres de batina»..

     Também a corrente simbolista exerceu nele notável influência.
bem expressa na poesia «Num bairro moderno», onde o  de horta»
da giga  da hortaliceira se vai desdobrando num mundo fantasmagórico e grotesco de rostos, ossos, seios e sangue.
     A temática sensualista de Cesário, que declara «e tangem-me,
excitados, sacudidos,/o tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!»
está presente em todas as suas posias, pelo menos de forsuama latente.
Homem de vida pouca, apercebendo-se  de que havia que fruir dela
intensamente, já que o tempo urgia, transmite à sua obra a força dum pacto secreto celebrado com a vida, pcto esse descoberto no
quotidiano, que em Cesário é fonte de sonho e ponte de e  para a
poesia.
      Como poeta do quotidiano, também a sua linguagem poética
procura, na coloquial, matéria-prima.Manejando soberbamente o
adjectivo e o advérbio (nisso só Eça se lhe compara), consegue uma
feliz imagística que não pode buscar na lógica a sua explicação e que é uma descoberta de novas possibilidades de utilização da
linguagem.
       Quando o autor nos relata um «um cheiro» como «salutar e honesto» ou se queija da sua «quimera azul de transmigrar» está não só a criar como a reinventar, descobrindo na Língua, património colectivo, novas formas de dizer.
       Esse trabalho tem, no entanto, muito poco de espontâneo, já 
que, segundo afirma  -- «apuro-me a lançar originais exactos/os
meus alexandrinos  [...]» --, há em toda a sua poesia um louvável
trabalho artesanal.
       Aqui fica o livro de Cesário Verde. Que o leitor nele possa
encontrar a sátira e a denúncia dos dramas quotidianos e a beleza
de estar vivo e sabê-lo.

A JORGE VERDE  a)

   Aqui deponho em suas mãos e debaixo de seus lábios o livro de

seu irmão. A minha - obra - terminou no dia em que ele saiu da
nossa doce amizade para a nossa terrível  amargura: morri, meu
querido Jorge -- deixe-me chamar assim ao irmão do meu querido
Cesário; morri para as alegrias do trabalho, para as esperanças
nos enganos doces! O desmoranamento fez-se, a um tempo, no
espírito e no coração! Dos restos do passado deixe-me oferecer-lhe
a dedicação extremada; peça-me o sacrifício: e, quando, no decorrer da vida, se lembrar de nós, tenha esse pensamento consolador:
   «A grande alma de meu irmão soube impor-se a um coração
endurecido»; e tenha estoutro pensamento: «Mas não estava de 
todo endurecido o coração que soube amá-la.»
     Adeus, meu querido Jorge!
   
a) Irmão mais velho de Cesário Verde

sábado, 14 de fevereiro de 2015

656 -« SETENTRIONAL» - CESÁRIO VERDE

656

SETENTRIONAL

Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo da babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com prantos uma acácia.

Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E as lajes campais do cemitério.

Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,

Ou bicos agrestes dos silvados.

E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos;

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas.
Pousarem borboletas doudejantes
Nas tuas formosissimas madeixas.
Daquela cor das messes lourejantes,

E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro.
E cobrindo as faces desbotadas;

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos,
Que os rouxinóis teciam nas olaias,

E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais,
Devolvia-te os beijos que me deras;

Quando se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda...

E foste sepultar-te, ó serafim.
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cális da agonia.

E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
Eu cobriria a carne de cilícios.

CESÁRIO VERDE

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

652 -- «FOGO POSTO» - JOÃO RUI DE SOUSA

652

   FOGO POSTO

É cada vez mais preciso
transformar a paisagem,
navegar noutros barcos,
percorrer outros rios.

A copa das árvores
já não chega à nossa altura.
É cada vez mais preciso
que a floresta arda.

JOÃO RUI DE SOUSA


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

648 - SVETI STEFAN

648

Você já conhece Sveti Stefan?

Essa ilhota em Montenegro é um destino famoso por receber visitas de milionários e ser um refúgio discreto de muitas celebridades. Coisa fina!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

647 -- «PROGNÓSTICO» BERTOLT BRECHT

647

PROGNÓSTICO

Quando o fantoche a quem os reis do carvão
Fazem representar neste país o papel do Führer
Tiver representado por muito tempo o papel de Führer neste país
Passará a representar em todo o continente
O papel de Füher.

Quanto mais canhões tiver
Mais ameaças fará.
Pensará: eles têm medo da guerra, mas,
Um dia, será ele que terá a guerra.

Exclamará: a velha França
Está cansada, quer que a deixem em paz.
E contra ele se levantarão os esquadrões de tanques da França.
Exclamará: para os ingleses, povo de merceeiros,
A guerra é demasiado cara.
E contra ele  se levantará o oiro do Transval e das duas Índias.
Exclamará: a América

BERTOLT  BRECHT


domingo, 1 de fevereiro de 2015

646 - «MOSTEIRO DOS JERÓNIMOS» - LISBOA (PORTUGAL)

646

MOSTEIRO DOS JERÓNIMOS  LISBOA  (PORTUGAL)

645 - «A PARTIR DA AUSÊNCIA» - ANTÓNIO RAMOS ROSA

645

A PARTIR DA AUSÊNCIA

Imaginar a forma
doutro ser Na língua
proferir o seu desejo
O toque inteiro

Não existir

S o digo acendo os filamentos
desta nocturna lâmpada
A pedra toco do silêncio densa
Os veios de um sangue escuro

Um muro vivo preso a mil raízes

Mas não o vinho límpido
de um corpo
A lucidez da terra
E se respiro a boca não atinge
a nudez unaa
onde começo

Era com o sol E era
um corpo

Onde agora a mão se perde era o espaço
onde não é


O  que resta do corpo?
Uma matéria nua e fria?
Um hauto de desejo
retem ainda o calor de uma sílaba?

As palavras soçobram rente ao muro
A terra sopra outros vocábulos nus
Entre os ossos e as ervas
uma outra mão ténue
refaz o rosto escuro
doutro poema

ANTÓNIO RAMOS ROSA