sábado, 14 de fevereiro de 2015

656 -« SETENTRIONAL» - CESÁRIO VERDE

656

SETENTRIONAL

Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo da babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com prantos uma acácia.

Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E as lajes campais do cemitério.

Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,

Ou bicos agrestes dos silvados.

E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos;

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas.
Pousarem borboletas doudejantes
Nas tuas formosissimas madeixas.
Daquela cor das messes lourejantes,

E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro.
E cobrindo as faces desbotadas;

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos,
Que os rouxinóis teciam nas olaias,

E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais,
Devolvia-te os beijos que me deras;

Quando se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda...

E foste sepultar-te, ó serafim.
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cális da agonia.

E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
Eu cobriria a carne de cilícios.

CESÁRIO VERDE

Sem comentários:

Enviar um comentário