domingo, 22 de fevereiro de 2015

665 - «CRISTALIZAÇÕES« CESÁRIO VERDE

665

CRISTALIZAÇÕES

          A Bettencourt  Rodrigues


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
       Vibra uma imensa claridade crua.
       De cócoras, em linha, os calceteiros,
       Com lentidâo, terrosos e grosseiros,
       Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
       E a descoberto sol abafa e cria!
      A  frialdade exige o movimento;
      E as poças de água, como em chão vidrento,
      Refletem  a molhada casaria.

Em pé e perna,  dando aos rins que a marcha agita,
      Disseminadas, gritam as peixeiras;
      Luzem, aquecem na manhã bonita,
      Uns barracões de gente pobrezita
      E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves, nem o choro duma nora!
      Tomam por outra parte os viandantes;
      E o ferro  e a pedra -- que união sonora! --
      Retinem alto pelo espaço fora,
      Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
     Cuja coluna nunca se endireita,
     Partem penedos. Cruzam-se estilhaços.
     Pesam enormemente os grossos maços,
     Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
     Que espessos forros! Numa das regueiras
     Acamam-se as japonas, os coletes;
     E eles descalçam com picaretes,
     Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores.
     Fundeiam, como esquadra em fria paz,
     As árvores despidas. Sóbrias cores!
     Mastros, enxárcias, vergas,. Valadores
     Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte ao frio -- o grande agente! --
     Carros de mão, que chiam carregados,
     Conduzem saibro, vagamente;
     Vê-se a cidade mercantil, contente:
     Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
     Em arco, sem as nuvens flutuantes. 
     O céu renova a tinta corredia;
     E os charcos brilham tanto, que eu diria
     Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
     Eu tudo encontro alegremente exacto.
     Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
     E tangem-me, excitados, sacudidos,
     O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friabem
     De tão lavada e igual temperatura!
     Os ares, o caminho, a luz reagem;
     Cheira-me a fogo, a silex, a ferragem;
     Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
     Dois assobiam, altas as marretas
     Possantes, grossas, temperadas de aço;
     E um gordo, o mestre, com ar ralaço
     E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
´    Que vida tão custosa! Que diabo!
      E os cavadores pousam as enxadas,
      E cospem nas calosas mãos gretadas,
      Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
     Uma bandeira penso que transluz!
     Com ela sofres, bebes,  agonizas;
     Listrões de vinho lançam-lhe divisas.
     E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
     Surge um perfil direito que se aguça;
     E ar matinal de quem saiu da toca,
     Uma figura fina desemboca,
     Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
    E a quem, à noite na plateia, atraio
    Os olhos lisos como polimento!
    Com seu rostinho estreito, friorento,
    Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados, 
    Como lajões. Os bons trabalhadores!
    Os filhos das lezírias, dos montados;
    Os das planícies, altos, aprumados;
    Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queijo hostil, distinto,
    Furtiva a tiritar em suas peles,
    Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
    Neste Dezembro enérgico, sucinto,
    E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
    Eles, bovinos, másculos, ossudos,
    Encaram-na sanguínea, brutamente;
    E ela vacila, hesita, impaciente
    Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
    Sem que ainda o público a passagem abra,
    O demonico arrisca-se, atravessa
    Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
    Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

CESÁRIO VERDE
         

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