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IRONIAS DO DESGOSTO
«Onde é que te nasceu», dizia-me ela às vezes,
«O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
«Porque é que não possuis a verve dos Franceses
«E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?
«Porque é que tens no olhar, moroso e persistente,
«As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
«E abrigas tanto fel no peito, que não sente
«O abalo feminil das minhas expansões?
«Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
«Mas quando tentas rir, parece então, meu bem,
«Que estão edificando um negro cadafalso
«E ou vai alguém morrer ou matar alguém!
«Eu vim -- não sabes tu? -- para gosar em Maio,
«No campo, a quietação banhada de prazer!
«Não vês, ó descorado, as vestes com que saio.
«E os júbilos que Abril acaba de trazer?
«Não vez como a campina é toda embalsamada
«E como nos alegra em cada nova flor?
»Então porque é que tens na fronte consternada
»Um não sei que tocante e enternecedor?
E eu só lhe respondia: -Escuta-me. Conforme
»Tu vibras os cristais da boca musical,
»Vai-nos minando o tempo, o tempo -- o cancro enorme
»Que te há-de corromper o corpo de vestal.
»E eu calmamente sei, na dor que me amortalha.
»Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,
»A pouco e pouco há-de ir tornando-se grisalha
»E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!
»E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
»Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, vãs,
»Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro
»O teu cabelo escuro às veneráveis cãs!»
CESÁRIO VERDE
IRONIAS DO DESGOSTO
«Onde é que te nasceu», dizia-me ela às vezes,
«O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
«Porque é que não possuis a verve dos Franceses
«E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?
«Porque é que tens no olhar, moroso e persistente,
«As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
«E abrigas tanto fel no peito, que não sente
«O abalo feminil das minhas expansões?
«Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
«Mas quando tentas rir, parece então, meu bem,
«Que estão edificando um negro cadafalso
«E ou vai alguém morrer ou matar alguém!
«Eu vim -- não sabes tu? -- para gosar em Maio,
«No campo, a quietação banhada de prazer!
«Não vês, ó descorado, as vestes com que saio.
«E os júbilos que Abril acaba de trazer?
«Não vez como a campina é toda embalsamada
«E como nos alegra em cada nova flor?
»Então porque é que tens na fronte consternada
»Um não sei que tocante e enternecedor?
E eu só lhe respondia: -Escuta-me. Conforme
»Tu vibras os cristais da boca musical,
»Vai-nos minando o tempo, o tempo -- o cancro enorme
»Que te há-de corromper o corpo de vestal.
»E eu calmamente sei, na dor que me amortalha.
»Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,
»A pouco e pouco há-de ir tornando-se grisalha
»E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!
»E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
»Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, vãs,
»Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro
»O teu cabelo escuro às veneráveis cãs!»
CESÁRIO VERDE
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