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NUM BAIRRO MODERNO
A MANUEL RIBEIRO
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se ,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamisada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmório duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examineia:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela é curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.« E muito descansado,
Atira um cobre igóbil, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente -- que visão de artista! --
Se eu transformasse os simples vegetais,
A luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com a cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de Bvez em quando.
E eu recompunha, por anatomia.
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancolia,
E nuns repolhos seis injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos -- ossos nús, do cor do leite,
E os cachos de uvas -- os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido,fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos dodo aquele peso
Que ao chão de pedraresistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho regra a trepadeira
Duma janela azul; e, com ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incendiá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário -- Q infantil chilrada! --
Lidam ménages entre gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus ráios de laranja destilada.
E pitoresca e audaz na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, ma atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras-carneiras.
LISBOA, Verão de 1877.
CESÁRIO VERDE
NUM BAIRRO MODERNO
A MANUEL RIBEIRO
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se ,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamisada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmório duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examineia:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela é curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.« E muito descansado,
Atira um cobre igóbil, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente -- que visão de artista! --
Se eu transformasse os simples vegetais,
A luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com a cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de Bvez em quando.
E eu recompunha, por anatomia.
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancolia,
E nuns repolhos seis injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos -- ossos nús, do cor do leite,
E os cachos de uvas -- os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido,fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos dodo aquele peso
Que ao chão de pedraresistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho regra a trepadeira
Duma janela azul; e, com ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incendiá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário -- Q infantil chilrada! --
Lidam ménages entre gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus ráios de laranja destilada.
E pitoresca e audaz na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, ma atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras-carneiras.
LISBOA, Verão de 1877.
CESÁRIO VERDE
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