quarta-feira, 12 de março de 2014

387 - UMA CANÇÃO DESESPERADA - PABLO NERUDA


387

A CANÇÃO DESESPERADA

Emerge a tua lembrança desta noite em que estou.
O rio junta ao mar o teu lamento obstinado.

Abandonado com os cais na madrugada.
É a ora de partir, ó abandonado !


Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Ó porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Em ti se acumularam as  guerras e os voos.
De ti bateram as asas os pássaros do canto.

Tudo devoraste, como faz a distância
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi                                                                           [naufrágio !

Era a hora alegre do assalto e do  beijo.
A hora do estupor que ardia como um farol.

Ansiedade de piloto, fúria de mergulhador cego,
Turva embriaguez de amor, tudo em ti foi                                                                            [naufrágio!

Na infância de névoa a minha alma alada e ferida.
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio !

Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
Caminhei mais além do desejo e do acto.


Ó carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
Á ti nesta hora húmida evoco e faço um canto.

Como um copo albergaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo estilhaçou-te como um                                                                          [copo

Era a negra, negra solidão das ilhas,
E ali, mulher de amor, teus braços me acolheram.

Era a sede e a fome, e tu foste uma fruta.
Era a dor e as ruinas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como pudeste tu conter-me
na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!

Cemitério de beijos, ainda tens fogo nas tumbas,

ainda os cachos ardem debicados por pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca de esperança e de esforço
em que nós nos juntámos e n os desesperávamos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra que quase nem nascia nos lábios

Foi esse o meu destino e nele viajou a vontade,
e nele caíu a vontade, tudo em ti foi naufrágio!

De tombo em tombo ainda chamejaste e cantaste.
Marinheiro de pé na proa dum navio.

Ainda floresceste em cantos, ainda rompeste em                                                                  [correntes
Ó porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar abraça a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros

Abandonado como os cais na madrugada.
Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos.

Ah mais além de tudo. Ah mais além de tudo.

É a hora de partir. Ó abandonado.

Pablo Neruda

Sem comentários:

Enviar um comentário